Monday, March 31, 2008

I scream

... de nojo
... de felicidade
... de rancôr
... de paixão
... de sonhos
... de madeira enterrada
... de amor
... de cegueira
... de dôr
... de improviso

com chantilly,
porque o chantilly disfarça tudo.



Sunday, March 23, 2008

dos discursos antes de adormecer

"..calculo que o céu tenha desbotado lentamente para ti. Deslizou-te o azul para debaixo dos pés, para a frente dos olhos. Ficou-te de costas para a nuca curvada.
No chão, o Sol ficou-te no Núcleo, a estratosfera no Manto. E no tecto ficaram os montes e vales, as florestas (é lá que agora sopram os ventos).
Verão a tua cara de pânico quando perceberes que demoraste demasiado a dar pela troca, e começares a cair no céu que pisas. O teu corpo vai disparar em direcção ao Sol, os pés para cima, a cabeça a berrar berros como labaredas de fogo de um minúsculo e ridículo foguetão..."


Thursday, March 20, 2008

estreia

Encontrei-o quando procurava o senhor Jaroslav Hutka, que aparece no final. Será do agrado de quem goste de barbas grisalhas, e é acompanhado por uma banda sonora envolvente. Estava no Youtube há dois meses e tinha zero visualizações.

Monday, March 17, 2008

policial pré-humanista

A porta bateu.
A porta bateu numa senhora de idade.
A porta bateu numa senhora de idade, roubou-lhe a carteira e fugiu. Deixou os documentos numa sarjeta, quatro quarteirões mais à frente.
Ao fim de um par de horas a porta foi apanhada.

Chamaram a senhora de idade à esquadra, que a identificou imediatamente.
("não, não é o alto moreno, não é o careca tatuado, não é o rapaz loiro de sardas, e não é o portão... é o número quatro...sim, tenho a certeza" - "Avance número quatro, obrigado aos restantes")

Trancaram a porta.
Trancaram a porta numa cela.
Trancaram a porta numa cela escura, sem primas janelas, com uma irmã surda que nunca se moveu.

Com a humidade a porta inchou. Para que não inchasse mais, envernizaram-na.
O verniz tapou-lhe os poros e sufocou-lhe a pele.
Morreu inchada mas brilhante.
E morreu fechada.

Assim se mata uma porta que bate.

ideias para a quarta dimensão

Concentre-se no seguinte estereograma e descubra os três estados de alma escondidos em 3d.

Agora multiplique os estados de alma pelo número de dimensões que vê.
Se o resultado não foi nove, adicione água.
Tempere a gosto.
Sirva quente.
Repita.

(esta receita sai na Teleculinária nº 1087)

Tuesday, March 11, 2008

Daqui a muitos anos, passeava eu pelo meu Passado cruzando-me a dada altura com um cheiro a Tempo putrefacto.
Páro e olhei: à minha frente estendeu-se, pequena elevação no chão, a enorme vala comum das horas perdidas.
Terei então de matar mais uma, para as poder enfim chorar condignamente, desaparecidas que estão há tanto tempo.
Eu, que ainda tinha esperança de as encontrar com vida.

Thursday, March 6, 2008

um desvio e uma espera (santa rita)

da porta de trás da camioneta frigorífica com matrícula espanhola que esperava à minha frente no cruzamento, pingava porco liquido para a estrada.

traição ou o arranjo


-...e então eu disse-lhe que não, que estava enganado, que não tinha nada a ver, e que... - deteve-se. - Olha, tu estás a ouvir?
Encolhi os ombros. Não, não estava a ouvir.
- O que é que tens? - perguntou.
- Tira os óculos, se fazes favor.
- Porquê?... - pareceu hesitar. - Vais-me dizer que és daqueles que não consegue falar com uma pessoa de óculos escuros?
- Tira os óculos. Quero só ver uma coisa.
Eram enormes, armação em plástico branco, daqueles que foram novidade ao mesmo tempo que a mini-saia e que por qualquer motivo decidiram voltar para me atormentar. Vi-a pousá-los na mesa e olhei-a. Era exactamente como eu pensava: da cana do nariz para cima, da testa para baixo, praticamente de um lado ao outro da cara, havia um enorme vazio. Mais do que enorme, um vazio total. Conseguia ver-lhe de frente o cabelo que taparia a parte de trás da cabeça.
- Posso voltar a pô-los?.. - notava-se-lhe na voz o orgulho ferido.
- Podes. - tentei disfarçar um riso de satisfação tipo "ah, eu sabia...". - Então e isso foi porquê, conta lá?
- Pois, tive um pequeno problema com a cara e tive de a levar à oficina. - tinha retomado a pose da segurança despreocupada. - Está pronta na sexta.
- Ah... é que eu pensava que as pessoas quando usavam óculos desses era porque tinham deixado a cara em casa, num grande copo com água, como as avós faziam com as dentaduras...
Encolheu os ombros.
- Não sejas parvo. Mas olha, como eu estava a dizer, não era nada do que ele pensava e...

Tuesday, March 4, 2008

crime

Não.
Porque todos os vizinhos o conheciam bem. Nunca o tinham visto tocar num copo sequer, nunca por uma vez o ouviram trautear uma modinha. Há anos que era um homem rigido, mas um bom homem.
Nada.
Desde que a mulher tinha ficado desfigurada, a cara feita em caramelo depois de um acidente doméstico com um fogão, ele apenas sorría por simpatia, por delicadeza, para não desiludir quem lhe procurava animar o rosto duro, os traços tristes.
Ninguém.
Ninguém acreditou na história da vizinha de cima, que ele vinha bêbedo, a cantar a plenos pulmões pela rua fora, noite dentro. Essa sim, era uma pessoa má, a vizinha, sempre a gozar com eles, a dizer que pessoas assim deviam vir em pacotes de 6/8 gramas, ou em colheres minúsculas. Tinha sido ela, sempre a dizer que o café sabia mal sem eles, mas que a sociedade ficava bem melhor.
Não.
Não havia lugar a acidente. Era crime, era maldade, era coisa de assassinos.
Porque só uma assassina despejaria um balde de água na cabeça do doce Homem de Açúcar.

banho

Monday, March 3, 2008

consideração

Nenhum homem habita realmente em sua casa até andar pela primeira vez com os pés em cima dos sofás.
"Estou a chorar um desgosto de Amor,
ele estava vivo quando o enterrei."