Thursday, April 26, 2007

Um retrato.

As ruas são o seu principal passatempo. Passeia-se por elas e observa a toda a sua volta. Sempre viveu na cidade, e se pensou por um momento na possibilidade de ir viver onde se vive o mar, ou o campo ou a serra, passou-lhe o pensamento num momento também.

Acha que a humanidade é a prova viva da existência de Deus, pois ambos são exactamente a mesma coisa. O Homem criou monstros que verga ao seu poder de Pai e Criador, habita neles, voa neles.

Gosta de prédios. Nos seus passeios pelas ruas observa-os, fala com eles, segreda-lhes ao ouvido que eles não têm. Diz-lhes que os ama, que os quer, que são eles que fazem a cidade ser assim deliciosamente castradora, no seu abraço de que ele não consegue fugir.

Encantam-no sobretudo os prédios que se escondem por detrás das estruturas metálicas. Os andaimes, expressão que ele odeia por ser simplista, suja. Secretamente chama-lhe roupas.

À noite, quando os carros se reduzem a massas rápidas e sussurrantes que passam sem olhar, ele pode ficar a sós com os edificios que lhe prenderam o olhar e lhe roubaram os suspiros durante o dia.

Escolhe os que têm estruturas exteriores e sobe-as. Consegue fazê-lo com o silêncio de quem ama em segredo durante a noite. Lá no alto sente-se seguro nos braços dos gigantes e descansa como não pode durante o dia. Volta a repetir as palavras que disse à luz do Sol e sente no vento frio das ruas iluminadas por candeeiros dispersos o sorriso do seu amado.

Uma mulher, um homem, são objectos demasiado pequenos para poderem ser objectos de amor. À grandeza do Amor, ele celebra-a assim, à frente da janela, à frente do vidro que o afastaria do Mundo.

Assim, escondido do lado onde cai a sombra durante o dia, respira fundo e sente-se feliz nos braços do monstro de cimento, que sem pernas não pode fugir.

Este grito não é de guerra (esboço e súmula)

Esboço:

"Andam a encher-me os ouvidos de ti. Dizem-me que fizeste o mesmo que os outros. Não sei, talvez te guarde um "também tu" como o personagem antes de morrer.
Há voltas ao Mundo nos pés e nas mãos que são um autêntico desperdicio. Fazem lembrar o Shoko Azahara (que agora notei que tem um nome que podia ser uma marca de chocolates), acho que era assim o nome dele, que era gordo, cabeludo, e barbudo e dizia que em meditação levitava até à Lua. No entanto nunca saía da cela da prisão, a ela confinado por ter morto dezenas de pessoas com gás.
Mesmo pessoas sem poderes meditativos fazem voltas ao mundo e voltam iguais, sem se terem movido. E continuam sem compreender a essência de uma conversa entre dois desconhecidos.

Ver tudo do Mundo inteiro e voltar sem um sorriso para um estranho não é de gente humana, mas sim do bicho-Homem. Essas pessoas são as mesmas que vêem nas prisões um depósito de massa que convem esquecer. Não se pode dar calor a quem falha, a quem vai voltar a falhar? Não se pode ter um gesto de pessoa?
Uma temporada no sofá é um analgésico poderoso e, a meu ver, insuficientemente receitado.

Mas e tu?
E se me desiludires? Se me tiveres mentido assim, rido de mim no silêncio dos teus pensamentos, na lingua que é só tua, como eu tenho a minha, que só o que me anima compreende?
Será então tão minha a culpa quanto tua, terei esbanjado o sorriso guardado em ti.
Mas nada diz que só guardo um.

Súmula:

No meio disto tudo, talvez ele tenha razão, afinal.
Se calhar deviamos ser todos perfeitos.
Ao fim de 10 anos o imperfeito seria exótico. 30 anos depois seria finalmente belo."

Sabão.

Friday, April 20, 2007

Teoria das Idades - a recuperação.

Sempre achei curioso o facto de o meu aniversário, tal como todos os outros dias do mês, se movimentar ao mesmo ritmo ao longo da semana. Este ano calhou numa sexta, para o ano calha num sábado, e assim por diante. Nos anos bissextos, o dia da semana não muda.

É claro que isto tem uma simples explicação matemática, tal como é claro que este dilema é daquele género que assalta qualquer pessoa que começa a usar minimamente os neurónios de uma forma inventiva, o que acontece ainda em criança.

Mas esqueçamos isso.

A ideia é passar a contar a idade das pessoas pelo movimento dos dias do seu aniversário.

Um exemplo:
A criança X (raio de nome para uma criança) nasceu na quinta-feira, 19 de Maio de 2005.
O primeiro aniversário da criança X será na sexta-feira, 19 de Maio de 2006.
Assim, em vez de dizermos "X faz um ano, que lindo.", dizemos "X tem um dia, que amoroso."
À luz desta nova abordagem, o termo aniversário perderá o sentido, uma vez que não é de anos que estamos a falar. Quanto muito poderá falar-se de "regresso ao dia de nascimento" o que dá até um ar um pouco divino à coisa.

A vida passará então a ser contada não em anos, mas em dias ou semanas.

Se as vantagens podem não ser obvias considerando crianças, tomemos em linha de conta alguns exemplos:

- O Francisquinho tem uma semana.
- Um cantora pop tem três semanas (e não mais)
- A avó faz amanhã dois meses. (nas avós é permitido o recurso aos meses, já que podem não se sentir confortáveis com os números grandes, que poderiam ser interpretados como sinónimos de velhice).

Uma vez que a sociedade ocidental gosta de números ditos "redondos", a importância dos aniversários clássicos (16, 18, 21, 50, 100) seria transferida para outras datas na nova nomenclatura:

- 1, 2, 3 semanas.
- 1, 2, 3... meses.

Isto acarretará, necessariamente, alterações à sociedade de consumo, uma vez que o ritmo de compra se modificará mediante a relativização da importância das anteriores idades-chave.

Os anos bissextos, ao manterem a posição das datas nas semanas na maior parte dos dias do ano, deverão ser considerados uma benesse da ciência no sentido da eterna juventude. A fonte está claramente seca, mas como se pode ver, há pequenas consolações.

A esfera de influência, o raio de acção desta nova abordagem, chega também a outras àreas, como por exemplo, o cinema.

O filme 9 semanas e meia, protagonizado por Kim basinger e Mickey Rourke em 1986 é disso o exemplo mais flagrante.
Repare-se:
Nove semanas e meia correspondem a 66.5 dias. Procedemos ao arredondamento para 67 dias.

Contemos agora com os anos bissextos:
O primeiro que temos antes de 1986 foi 1984. Aos 65 dias, portanto.

65/4 é aproximadamente igual a 16. Ou seja, ao longo das nove semanas e meia, houve 16 anos bissextos.

Portanto, devemos acrescentar 16 anos aos 67 do titulo do filme, ou seja, 83.

1986 - 83 = 1903

Factos relevantes que tiveram lugar em 1903:
O primeiro espectáculo de moda americano (Nova Iorque)
Foi comercializado o primeiro pacote de férias na neve (Adelboden - Suiça)
O primeiro torneio internacional de Ténis na Hungria (ganho pelo britânico J. G Ritchie)

A relevância de todos estes eventos, aos quais o filme faz uma velada homenagem, ajudam a explicar o porquê da falta de qualidade a variadissimos niveis, o que faz com que o filme seja apenas recordado por causa de um senhor barbudo que canta uma música sobre chapéus.

E pouco mais.

(Fora anos bissextos, o senhor barbudo afirma ter cerca de oito semanas e seis dias. A caminho das nove semanas e meia, portanto..)

Thursday, April 19, 2007

Hipotéticamente político.

Se eu tivesse começado um blog há pouco, recusar-me-ia a comentar assuntos claramente políticos.
Se eu fosse essa pessoa, não gostaria de ter nada de "claro" no meu blog, porque o "claro" seria de uma análise demasiadamente imediata para o meu gosto.

Por outro lado;

Se por um qualquer acaso eu tivesse ouvido que numa operação policial se prenderam dezenas de "alegados" (sempre "alegados" - a constituição a isso obriga) membros de movimentos de extrema-direita,
Se, nessa circunstância, eu tivesse ouvido na rádio o líder do auto-proclamado partido de extrema-direita português dizer, em voz lamuriosa, algo deste género:

"Já tomei conhecimento do que se está a passar... a mim parece-me um caso claro de perseguição política..."

Se, este homem fosse o mesmo que aquele que num grande cartaz numa ainda maior rotunda reclamava a expulsão de imigrantes;
Se o partido por ele dirigido contasse entre as suas propostas de acção com coisas como saneamento político, étnico, etc..

Se isso acontecesse, e só se isso acontecesse,
Então sim, eu poderia escrever isto:

Se o ridiculo matasse...

Wednesday, April 18, 2007

Paralela da Avenida (por Sabão)

"Dá gosto ver-te essa cara, esse sorriso espontâneo que te saltou apenas de uma pergunta. Fica-te bem o ar sonhador, no meio dos carros todos, mais arrumados hoje do que em qualquer outro dia.

Valeu a pena passar por ali, apertar-te a mão, conversar contigo e ver-te assim mais novo do que diferente.

Ela fica-te bem nos olhos, nos gestos, no brilho.

Um abraço e boa sorte.
Sabão"

Tuesday, April 17, 2007

A Sociedade da Informação


Não me levem a mal, eu gosto da sociedade da Informação. Gosto. Mas ela às vezes presenteia-me com dados que eu, realmente, dispensava.
Este senhor decidiu dar uma belissima entrevista a um semanário de desportos motorizados. Teve uma grande atitude. Como ele diz e muito bem, na última resposta que dá na entrevista "(os jornalistas) quando não me fazem perguntas destas, são porreiros".

Tenho a certeza que o senhor também é um tipo porreiro, mas permito-me confessar que fico contente por não termos sido vizinhos nos 70's.

Friday, April 13, 2007

O melhor de todos os bigodes.

Aquele homem, que me entrava pela casa durante a manhã, pela janela dos fundos (a televisiva);

o mesmo homem que pôs pais e filhos a deslizarem pratos sobre uma toalha aos quadrados (tudo deliciosamente plástico), nas manhãs de sábado ou domingo, que na altura ainda deviam (deviam!) ter desenhos animados;

o homem a quem todos os júris de um festival nacional da canção chamaram Zé Luís tantas vezes como as capitais de distrito (e tantas foram as vezes que ele disse "Manuel Luís... Manuel Luís...")

esse homem...

Um dia liguei a televisão e o bigode já não estava lá... foi tema para uma manhã inteira de conversas, e músicas pela banda do programa;

e esse homem deixou de ser esse homem para mim;

ele fica mais novo a cada dia que passa...

era o bigode... o bigode era o parasita dele.. não era um bigode, eram umas asas enormes num bicho minúsculo..

é isso que é um bigode.. não é?

um bigode ataca a cara de alguns homens... às vezes fica durante anos...

é todo um segredo do universo masculino agora revelado: essas idas secretas ao médico ("doutor, o que é isto que tenho na cara??.. isto respira, movimenta-se!".. - os ares alarmados, os choros de criança em homens crescidos, de pânico refugiado na segurança do segredo profissional do homem-medicina), sob a capa de uma visita a uma amante invariavelmente secreta, por sua vez escondida atrás de uma desculpa qualquer ouvida há anos num qualquer programa ficção nacional para toda a familia;

ele fica grisalho, balança mas não cai...

e os médicos fazem um ar assustado...

à segunda consulta já há um espirita (olha a concordância, essa gramática) ao lado do médico, uma mesa de pé de galo no lugar da marquesa, e velas sem sombra de jantar romântico...

e o espirita chama o espiga-rodrigo, que vem da cave lá mesmo do fundo..

que aparece sorrindo aos pulinhos, com ar de criança a quem vão oferecer um doce...

o espirita (ok, o médium) diz-lhe com maus modos, estendendo-lhe o parasita arrancado à força da face do doente:

"Toma.. és o único gajo que conheço que gosta disto.."

e o diabo vai-se, porque guarda os bigodes como borboletas, num dos enormes quadros da vida selvagem que lhe enchem as paredes da sala-de-estar

e paga sempre o mesmo preço: tira uns quantos anos de cima das costas do parasitado...


Olhando agora para o outro senhor, porque ele ainda não perdeu o hábito de aparecer pela mesma janela de sempre, às mesmas horas de sempre, compreendo: o bigode foi para o diabo como a mais bela das borboletas, que lhe enche o coração de belos pensamentos, e o faz esquecer-se até do aroma fétido dos infernos (elimina o cheiro a enxofre como as pastilhas que tiram o calcário das máquinas - mesmo nos locais de suplicio eterno mais entranhado)

de cada vez que olha para aquele bigode, faz rodar para a esquerda os ponteiros do relógio da idade daquele que o soube alimentar para ficar assim belo, forte e robusto, digno de terminar em apoteose silenciosa na moldura comprada por Belzebu numa loja especializada..

Thursday, April 12, 2007

O arrastar da cadeira

Porque agora somos dois a guardar o Sol. Porque quando ele se deita contigo, acorda ao meu lado, lá à frente, no fim da rua.

Porque de todas as razões que eu tive para fazer isto, esta me pareceu a única que realmente justificava o acto de o fazer.

Talvez por ser simples, por me afastar de justificações complexas.

Esta é a garrafa de espumante que se abriu, porque enquanto estiveres aí, e eu aqui, o Sol vai ficar sempre a pairar sobre o nosso Mundo.

Ganhei o hábito de silenciosamente te desejar um bom dia quando me deito.