Monday, April 28, 2008

correntes

Aproximou-se dele, furiosa:
- Olhe o que fez! Despedaçou-me o coração!
- Desculpe, minha senhora... a senhora disse que era para assar...
- Guisar, seu incompetente! Guisar!
O talhante encolheu os ombros num gesto de lamento, olhando para o saco que a mulher depositou em cima do balcão:
- Bem, se a senhora quiser, eu terei todo o gosto em oferecer-lhe outro...- disse, como quem tenta remediar.
Ela encolheu os ombros por sua vez:
- Ainda não percebeu? Nunca vou arranjar um coração tão bom como este..
E dizendo isto, saiu.

Tuesday, April 22, 2008

conversa na Trindade

"(...)
- Criador, Criador... porque é que não criaste antes burros?.. - perguntei-lhe - Agora até há subsídios para isso...
Ele encolheu os ombros, e enquanto molhava o último bocado de pão no molho da segunda dose de conquilhas, disse como num lamento:

- Eu tentei... tenho o Senhor como testemunha... - mastigou o pão, quase choroso. - Deus sabe como tentei... (...)"


Thursday, April 17, 2008

um suave despertar

Tinha tido um suave despertar, tomado o pequeno-almoço tranquilamente, visto da janela os primeiros raios de Sol a despontar.
Passou o limiar da porta e entrou na rua. Olhou para o passeio do outro lado e pensou claramente "sempre que olho para uma palmeira, vejo um ananás gigante".
Foi nesse momento que lhe bateu uma enorme sensação de vazio. Não se lembrava de ter sonhado, não tivera um daqueles sonhos que ficam pendentes pelo toque do despertador; tinha tomado o mesmo pequeno-almoço de sempre, que tomava há anos sempre sem problemas, por isso também não seria daí; tinha consigo tudo aquilo que precisava para o resto do dia...
Foi então que se lembrou do homem que tinha deixado a dormir em cima da cama. Esquecera-se dele. Que estupidez, ia ter de voltar atrás...
Seria o seu primeiro atraso desde que começara a trabalhar. Nunca antes o Pijama se tinha atrasado, e logo por um motivo tão parvo...
"Onde é que eu tinha a cabeça?" pensou, ao correr de volta a casa.

Tuesday, April 15, 2008

"Os laços" - conto prático para a compra online

Era um homem que fazia todas as suas compras online: música, comida, roupa, para tudo tinha um site especifico, melhor do que os generalistas.
Eventualmente encontrou um site que vendia emoções: tristeza, alegria, raiva, compaixão, de tudo havia naquele site. Pelo preço certo, bastava o número do cartão de crédito e o utilizador recebia a emoção desejada na quantidade pretendida.
Desse site passou para outro: um que lhe permitia comprar amigos. Fez a sua primeira encomenda numa tarde de chuva.
Ao fim de alguns dias cancelou a encomenda, alegando que não tinha chegado a haver entrega.

o hipnotizador

Quando ligaram ao hipnotizador a dizer que no dia seguinte começaria a trabalhar num call-center, ele ficou deveras contente. Pensou na sua imensa capacidade para controlar as mentes por telefone, e como seria fácil conquistar o Mundo a partir do seu novo trabalho (os hipnotizadores são, regra geral, gente pouco democrática).
Assim, os dias de trabalho passaram-se entre "com quem tenho o prazer de estar a falar?..." e "escuta bem o som da minha voz..."; "receberá um sms de confirmação da mudança de tarifário" e "ao meu sinal, estarás sob o meu poder".
Tão entretido estava com controlar as mentes dos clientes que nem deu grande importância à repetição constante de todos os procedimentos, vezes e vezes sem conta.
Por isso, quando deu por ele, já era demasiado tarde. Era uma galinha.

à solta

Durante o dia, a minha imaginação anda sempre à solta.
Aqui há tempos, encontraram-na na rua, pensaram que estava abandonada e meteram-na na carrinha.
Quiseram abatê-la, mas não abateram.

Friday, April 11, 2008

aviso

Se corres, corro contigo.

Tuesday, April 8, 2008

génese

...então, como estava cheio de medo, dirigi-me à farmácia e comprei um teste de futilidade. Deu positivo, nota máxima aliás...
Assim, vou ter gémeos. Só espero que não saiam pela ordem errada.

vingança no jardim das bestas

Extenuado pela felicidade dos últimos dias, entreguei-me ao sono no final da tarde, não sem antes me debater, inclusivamente a mim mesmo.
Acordei com um sussurro doce. Era a tristeza.
Tinha-lhe andado a fugir durante todo o dia, sentindo-a no meu encalço de tempos a tempos. Percorri estradas, vi cidades, perdi-me, gastei até algum dinheiro em nada mais do que umas roupas (método que me tinham vendido como infalível), mas havia que admitir a verdade: tinha sido apanhado, finalmente.
Levou-me pela mão para sua casa. Mostrou-me todas as divisões com um tom neutro nos gestos, a voz silenciosa. Vinha-me à cabeça a expressão francesa que resume a confrontação com a coisa já vista. Tudo aquilo me era conhecido, como se tivesse peças iguais na minha própria casa, ou talvez ainda mais perto.
Quando terminámos o segundo andar, fiz-lhe o meu pedido, ao qual a tristeza acedeu servilmente, como a uma ordem:
- Mostra-me a cave.
Descemos as escadas, as mesmas que na minha memória sempre ficaram marcadas como "as escadas de qualquer cave imaginada" (a minha imaginação plagia-me muitas vezes as recordações).
O espaço não tinha mais luz que penumbra, as formas não eram mais que ténues. Era uma enorme sala rectangular, dividida ao meio por uma recta de luz muito definida, entre duas portas exactamente uma à frente da outra. Sentia-me como num enorme museu, uma gigantesca colecção privada de coisas nunca vistas, nunca mostradas, nunca perguntadas.
Ao fundo, de um dos lados, senti a presença colossal do Medo, o seu resfolgar ávido a adivinhar-se numa massa de ar quente que ia e vinha. Mais próxima estava uma grande pedra fria, ligeiramente mais baixa do que eu. Tinha contornos mutantes, um rosto liso como uma lápide, e segurava nas mãos um tabuleiro de jogo.
Do lado oposto da sala, tão grande e invisível quanto o Medo estava a Solidão. Percebia-lhe o corpo de prata nos reflexos escuros. Alimentavam-se da mais pálida luz. Do lado da Solidão também havia uma pedra, de tamanho idêntico ao da primeira. Encontrava-se mais próxima da luz do que a outra. Tinha cara mas não tinha coração, e numa das mãos segurava um saco de plástico vazio.
Foi ali no fio de luz que definia o corredor que mais uma vez me debati, agora indubitavelmente a mim mesmo.

Foi com a minha voz que acordei.