Tuesday, December 25, 2007

Ceia de Natal

"Faz-me um favor: traz os sonhos que ficaram em cima da mesa da cozinha."

Monday, December 24, 2007

O obscurantismo não é uma cor.

Thursday, December 20, 2007

Acordei durante a noite com um ruído quase imperceptível. Deixei-me ficar quieto e calado até que o ruído se repetiu. Era uma fungadela. Assim mesmo. Era acompanhada pelo som de um ininterrupto lamento, um imparável pranto sussurrado.
Afastei os lençóis. Lá estavam eles. Encolhidos, os mindínhos dos meus pés choravam, cada um para seu lado, mas com gestos que só podiam indicar uma mesma mágoa.
Os meus mindínhos amam-se.

"Fracturas múltiplas, lesões internas que resultaram em morte."
Perante o corpo deitado nas rochas, com os membros desfeitos como se tivessem numerosas articulações, a causa parecia clara: suicidio.

A tese do acidente viria no entanto a ganhar consistência quando se procedeu ao levantamento dos haveres pessoais da vitima. No bolso alguém encontrou um papel com uma mensagem simples: "caí".

Foi um jovem inspector que se apercebeu do facto que levaria à comprovação do homicidio: como poderia um homem morto na sequência de uma queda descrever as circunstâncias da sua própria morte no pretérito? Teria sido o verdadeiro culpado a escrever e a deixar o pequeno bilhete no bolso da vitima; ou pior: teria, com macabra frieza, coagido a vitima a escrever ela mesma o bilhete para depois a assassinar.

No dia seguinte alguém era preso.
Ironia ou uma última nota de humor nunca foram hipóteses.

Pequenos excertos de velhas em cafés.

As duas mesas serviam para cinco pessoas. Nenhuma delas estava sentada à cabeceira mas havia uma harmoniosa distribuição do espaço. Talvez por estarem na corrente de ar de uma tarde que estava fria.
A média de idades à mesa rondava os 65/70 anos. Ninguém parecia usar a sua côr natural de cabelo.
Eles liam "A Bola" e o "24 horas", absolutamente silenciosos e imóveis.
Elas conversavam entre si, tão alheias a tudo o resto quanto eles.

Dizia uma delas que agora a calista lhe tinha descoberto uma coisa qualquer nos dedos. Outra respondeu muito depressa e de forma segura:
- Isso são micoses!
- Pois são micoses, pois - confirmou a primeira. - A minha calista diz que passa. Põe-me os dedos em parafina e diz que vai passar.
A outra replicou prontamente:
- A mim, a médica disse para eu pôr creme gordo.
- Deve ser Barral, com certeza.
- É Barral, é. - responde com jeitos de "Claro que é Chanel".
Nisto a silenciosa decide intervir com uma altissima voz com um timbre cheio de idade:
- Mas isso é para quê, mesmo?
- Prás micoses, Maria!
- Para o quê?.. - volta a perguntar. Percebo que finalmente descobri uma entidade essencial nos grupos de velhas: a surda.
- PRÁS MICOSES MARIA!! A TERESA TÁ COM MICOSES NOS DEDOS DOS PÉS!!
- Ah...

Nem "A Bola" nem o "24 horas" se mexeram. A conversa seguiu.
A sociedade portuguesa está-se a tornar incrivelmente despudorada. As velhas derrubaram as micoses, o último bastião da intimidade.
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Uma senhora conversa ao balcão com o dono do café: "vai chover, não vai", "como é que está o seu mais novo, o meu casou-se"...
Sentada a uma mesa junto à enorme janela gradeada pelo lado de fora, uma outra mulher toma o seu café da tarde. De súbito detem-se e observa a que está a conversar ao balcão. É nitido que faz uso de toda a educação assimilada ao longo das suas várias décadas quando pergunta num tom cortês mas suave:
- A senhora desculpe eu interromper... - começa pausadamente. - Mas a senhora não é de Évora?
A outra retribui-lhe a delicadeza com um meio-sorriso irrepreensivel:
- Sou sim. Mas já saí de lá tinha eu quinze anos, já lá vão mais de quarenta anos - permite-se a inconfidência com a leveza de quem convenientemente se esquece de como se fazem contas.
- Pois. Agora estava a olhar para a sua cara e estava a pensar "parece-me que conheço aquela cara de algum lado". - prossegue a senhora sentada à mesa. - Isso foi mais ou menos quando eu também saí de lá.
A conversa cai num silêncio simultâneo. Ao balcão reata-se a conversa com o patrão enquanto à mesa se retoma a leitura do jornal.
Duas pessoas nascidas no mesmo sitio, que se entreolharam durante quarenta anos, demoraram apenas 20 segundos para descobrir que não tinham absolutamente nada em comum.

E fizeram-no de ânimo leve.

Tuesday, December 18, 2007

Romanização

Sic transit

Glória Mundi

Friday, December 14, 2007

"Ich bin ein berlina."

Thursday, December 13, 2007

Colossal Miocárdio.




Pára o carro na berma da estrada. Está no meio de uma enorme planície árida, a perder de vista.
Sai do carro e abre a bagageira. Do interior tira uma pá.

Algures do outro lado do mundo, estão duas crianças deitadas como sobrancelhas no chão.

Afasta-se, deixando a bagageira aberta. Até sair verdadeiramente da estrada tem de descer da berma até ao campo. Caminha durante alguns metros e olha em volta. Sente o chão mais macio e quente naquele local, e começa a escavar.

Ninguém deixa os ouvidos cair ao Mar.

Não sente nada de diferente na pá, mas a dada altura sabe que chegou. Continua a escavar, agora em volta. No meio do buraco está um enorme coração, gigantesco mas leve como uma pena. Pega no coração gigante com os dois braços e sem qualquer esforço leva-o para fora do buraco.

As duas crianças rebolam sorridentes para o mesmo lado. Entram nas covas de dois olhos abertos. Continuam a rebolar como numa brincadeira e fecham assim os olhos que não se voltam a abrir.

Põe o coração na bagageira. Escolheu bem o carro, tem as dimensões exactas para transportar o colossal miocárdio. Fecha a porta da mala e descobre que se esqueceu de guardar a pá. De qualquer maneira já não há espaço para ela lá dentro, terá de viajar no banco de trás.

Agora as mãos.

Tuesday, December 11, 2007

Perfume II









Em resposta a "Perfume" em http://www.kitcowboy.blogspot.com/

Wednesday, December 5, 2007

A viagem

Ela chamava-se Iris, dele não me lembro do nome.
Iris era muito bonita, tinha um verde que pousava em tudo o que a atraía. Estava sempre a observar, parecia ter curiosidade por tudo e estava permanentemente atenta ao que se passava à sua volta.
Ele era mais escuro, de um negro profundo. Falava mais do que ela, mas tinha menos calor no que dizia. Era no entanto de trato fácil. Quando falava olhava directamente para o interlocutor com um olhar que trespassava. Parecia estar sempre a colocar silenciosamente uma mesma questão esperando que a adivinhássemos.
Durante o tempo que estive com eles, ninguém tentou adivinhar que pergunta seria. Eu também não.
Iris e Ele formavam um casal um pouco estranho, na verdade: cada um sempre nos seus longos silêncios, trocando um olhar significativamente sorridente de vez em quando. Tinham uma curiosidade devoradora por cada rua pela qual passavamos. Nenhum deles conhecia a cidade.
Mostrei-lhes todos os pontos turisticos habituais, os monumentos, os jardins. podia ter-lhes mostrado mais, mas não aguentava os constantes olhares de toda a gente à nossa volta.
Mantive sempre a calma. Da primeira vez que me preparava para gritar com uma mulherzinha que ria e apontava para eles parei para pensar: a verdade é que eu também nunca tinha visto.
Iris sorria com o seu verde e dizia-me:
- Não te rales... eles olham porque nunca antes tinham usado os deles.

Iris e Ele eram ambos globos óculares. Olhos.

Nunca os vi piscar, a nenhum deles. Mas de cada vez que passávamos por uma fonte tinhamos de parar para que se refrescassem um pouco.
Ele chamava a Iris "minha córneazinha"; Iris tratava-o simplesmente pelo nome, o mesmo de que agora não me lembro.

Quando mais tarde nos despedimos, e eles seguiram viagem, agradeceram e enalteceram o meu desempenho como cícerone. Tinham aprendido muito sobre o país, as pessoas, a história, tudo o que era identidade cultural. Agradeci-lhes e fiquei a ver o comboio partir, levando-os para outras paragens, provavelmente com a janela do compartimento fechada, porque nenhum deles gostava de vento.

Lembrei-me para comigo do que tinha aprendido com eles: um idioma diferente, uma forma nova de observar o mundo. Mas tinha sido ao vê-los à mesa na nossa primeira refeição que mais sorrí durante esses dias. Eu que sempre tinha sido um céptico em relação a isso, pude ver que afinal é mesmo verdade:

Os olhos também comem.

Sunday, December 2, 2007

Em negação

Ele foi Usado como Novo
Mas afinal já não era novo,
Era usado.
Eventualmente avariou-se.

Afta

Saturday, December 1, 2007

Água suja

3. Amargo

A porta da sala está sempre fechada, como as restantes portas da casa. Lá dentro, todos os móveis estão cobertos por enormes lençóis brancos que os protegem do pó e dos olhares de ninguém. É também a única divisão que recebe a luz do Sol.
É no quarto que passa mais tempo: uma cama, uma pequena secretária, um baú escuro.
O resto da casa é um enorme corredor desigual, com portas de madeira num dos lados apenas.
É uma casa feita de arrecadações.
Nos raros dias em que recebe uma pessoa, tira os lençóis dos móveis e estes mostram-se no esplendor imaculado das coisas escondidas que ninguém usa. Respiram fundo e aguçam o ouvido, ansiando pelo fim do silêncio entre as paredes sempre caladas.
Entre as duas pessoas trocam-se palavras, histórias. Ele tem um fascínio pelas histórias dos outros, coloca os cotovelos na mesa, deixa os dedos das mãos abraçarem-se, apoia o queixo nos polegares e fica assim a ouvir.
A um jantar segue-se outro, e outro. As histórias começam a repetir-se até o seu silêncio se tornar pesado, contagiante, inevitável para o convidado.
O dia chega em que os móveis são novamente cobertos com o lençol branco e começam a sussurrar todas as histórias que ouviram para delas não se esquecerem durante o silêncio. Nunca choram quando sussurrar não resulta.
Às vezes ele interroga-se sobre o seu enorme corredor. Constrói-o na sua semi-consciência, talvez com os olhos brilhantes, ou revirados ou simplesmente fechados. Sempre no dia seguinte ao último jantar a dois. Dois metros e uma porta de cada vez.
De tempos em tempos, abre uma porta. Encontra uma pessoa com várias caras mas sempre um rosto inexpressivo, indiferente. É um corpo de pé, de olhos fixos na porta. Ambos trocam sorrisos e recordam os jantares que partilharam.
É ele que fala, quem ouve sorrí e deixa os dedos das mãos abraçarem-se.