As duas mesas serviam para cinco pessoas. Nenhuma delas estava sentada à cabeceira mas havia uma harmoniosa distribuição do espaço. Talvez por estarem na corrente de ar de uma tarde que estava fria.
A média de idades à mesa rondava os 65/70 anos. Ninguém parecia usar a sua côr natural de cabelo.
Eles liam "A Bola" e o "24 horas", absolutamente silenciosos e imóveis.
Elas conversavam entre si, tão alheias a tudo o resto quanto eles.
Dizia uma delas que agora a calista lhe tinha descoberto uma coisa qualquer nos dedos. Outra respondeu muito depressa e de forma segura:
- Isso são micoses!
- Pois são micoses, pois - confirmou a primeira. - A minha calista diz que passa. Põe-me os dedos em parafina e diz que vai passar.
A outra replicou prontamente:
- A mim, a médica disse para eu pôr creme gordo.
- Deve ser Barral, com certeza.
- É Barral, é. - responde com jeitos de "Claro que é Chanel".
Nisto a silenciosa decide intervir com uma altissima voz com um timbre cheio de idade:
- Mas isso é para quê, mesmo?
- Prás micoses, Maria!
- Para o quê?.. - volta a perguntar. Percebo que finalmente descobri uma entidade essencial nos grupos de velhas: a surda.
- PRÁS MICOSES MARIA!! A TERESA TÁ COM MICOSES NOS DEDOS DOS PÉS!!
- Ah...
Nem "A Bola" nem o "24 horas" se mexeram. A conversa seguiu.
A sociedade portuguesa está-se a tornar incrivelmente despudorada. As velhas derrubaram as micoses, o último bastião da intimidade.
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Uma senhora conversa ao balcão com o dono do café: "vai chover, não vai", "como é que está o seu mais novo, o meu casou-se"...
Sentada a uma mesa junto à enorme janela gradeada pelo lado de fora, uma outra mulher toma o seu café da tarde. De súbito detem-se e observa a que está a conversar ao balcão. É nitido que faz uso de toda a educação assimilada ao longo das suas várias décadas quando pergunta num tom cortês mas suave:
- A senhora desculpe eu interromper... - começa pausadamente. - Mas a senhora não é de Évora?
A outra retribui-lhe a delicadeza com um meio-sorriso irrepreensivel:
- Sou sim. Mas já saí de lá tinha eu quinze anos, já lá vão mais de quarenta anos - permite-se a inconfidência com a leveza de quem convenientemente se esquece de como se fazem contas.
- Pois. Agora estava a olhar para a sua cara e estava a pensar "parece-me que conheço aquela cara de algum lado". - prossegue a senhora sentada à mesa. - Isso foi mais ou menos quando eu também saí de lá.
A conversa cai num silêncio simultâneo. Ao balcão reata-se a conversa com o patrão enquanto à mesa se retoma a leitura do jornal.
Duas pessoas nascidas no mesmo sitio, que se entreolharam durante quarenta anos, demoraram apenas 20 segundos para descobrir que não tinham absolutamente nada em comum.
E fizeram-no de ânimo leve.
Thursday, December 20, 2007
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2 comments:
uma estória triste que encaixa na vida de cada um de nós...há quem consiga viver com isso, e há quem aceite a realidade!
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