Tuesday, April 8, 2008

vingança no jardim das bestas

Extenuado pela felicidade dos últimos dias, entreguei-me ao sono no final da tarde, não sem antes me debater, inclusivamente a mim mesmo.
Acordei com um sussurro doce. Era a tristeza.
Tinha-lhe andado a fugir durante todo o dia, sentindo-a no meu encalço de tempos a tempos. Percorri estradas, vi cidades, perdi-me, gastei até algum dinheiro em nada mais do que umas roupas (método que me tinham vendido como infalível), mas havia que admitir a verdade: tinha sido apanhado, finalmente.
Levou-me pela mão para sua casa. Mostrou-me todas as divisões com um tom neutro nos gestos, a voz silenciosa. Vinha-me à cabeça a expressão francesa que resume a confrontação com a coisa já vista. Tudo aquilo me era conhecido, como se tivesse peças iguais na minha própria casa, ou talvez ainda mais perto.
Quando terminámos o segundo andar, fiz-lhe o meu pedido, ao qual a tristeza acedeu servilmente, como a uma ordem:
- Mostra-me a cave.
Descemos as escadas, as mesmas que na minha memória sempre ficaram marcadas como "as escadas de qualquer cave imaginada" (a minha imaginação plagia-me muitas vezes as recordações).
O espaço não tinha mais luz que penumbra, as formas não eram mais que ténues. Era uma enorme sala rectangular, dividida ao meio por uma recta de luz muito definida, entre duas portas exactamente uma à frente da outra. Sentia-me como num enorme museu, uma gigantesca colecção privada de coisas nunca vistas, nunca mostradas, nunca perguntadas.
Ao fundo, de um dos lados, senti a presença colossal do Medo, o seu resfolgar ávido a adivinhar-se numa massa de ar quente que ia e vinha. Mais próxima estava uma grande pedra fria, ligeiramente mais baixa do que eu. Tinha contornos mutantes, um rosto liso como uma lápide, e segurava nas mãos um tabuleiro de jogo.
Do lado oposto da sala, tão grande e invisível quanto o Medo estava a Solidão. Percebia-lhe o corpo de prata nos reflexos escuros. Alimentavam-se da mais pálida luz. Do lado da Solidão também havia uma pedra, de tamanho idêntico ao da primeira. Encontrava-se mais próxima da luz do que a outra. Tinha cara mas não tinha coração, e numa das mãos segurava um saco de plástico vazio.
Foi ali no fio de luz que definia o corredor que mais uma vez me debati, agora indubitavelmente a mim mesmo.

Foi com a minha voz que acordei.

2 comments:

Devaneante said...

Um par de sapatos tristes e gastos... talvez à espera que alguém lhes passe um pouco de graxa e lhes puxe o brilho...

Ninguém said...

"You can run, but you can't hide!"