Tuesday, January 22, 2008

Impacientava-se ao portão. Não tinha jeito para ver despedidas, embora já tivesse visto mil iguais àquela. Boris "O Gigante" tinha chorado, Klaus "O Homem-Foca", Elisabete "A Borracha Humana", Igor "O Deus do Fogo"... todos tinham chorado.
Olhou de esguelha para a porta. Lá estava o cenário habitual: os pais já completamente vencidos pelo pranto, a menina com um choro confuso. Aquilo ameaçava arrastar-se, claro...

Pigarreou.
Evitava pigarrear, e guardava todos os seus pigarreios para estas ocasiões.
Algo entre o "err... err" e o "hmm... hmm"
Foi assim que pigarreou.

Os pais da criança olharam-no. A mãe limpou as lágrimas, passou as mãos no avental, com os olhos muito abertos. Parecia preparada para lhe oferecer novamente "uma chávenazinha de café" na voz de tremura mal disfarçada com que o tinha feito havia pouco mais de um quarto de hora. O pai varreu a tristeza do rosto o melhor q pôde, e virou-se para a filha:

- Agora vais com este senhor, e vais-te portar muito bem, querida... sim? - mal conseguiu acabar a frase, de tantas vezes que lhe escapou a voz.
O homem ao portão estendeu a mão à criança:
- Vem.

A criança encaminhou-se para o homem cabisbaixa mas sem um queixume, com o medo estampado no rosto que ninguém via.
Quando o carro arrancou, o roçar dos pneus na gravilha sobrepôs-se ao pranto desalmado da mãe da criança. Do pai não mais se lhe viu um sorriso.

Assim saiu a Mulher Barbuda, então ainda menina, de casa dos seus pais para um estrelato em feiras itinerantes.

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Na aldeia de Roda Pequena, freguesia de Asseiceira, Concelho de Tomar, há um casal que há mais de um ano tem uma javali em casa. Perfeitamente afeiçoada aos donos, ela "corre, brinca, esfrega-se". Obedece aos comandos do dono: "anda cá","corre", "está quieta", "vai para o curral" [no jornal surgem por esta ordem, deve ter sido uma situação interessante].
Chamam-lhe Arisca por ter sido difícil de educar, e esteve muito doente durante algum tempo. Os donos deram-lhe leite por um biberão, curaram-lhe diarreias à base de farinha de trigo e leite. É "inteligente e asseada", o pêlo está bem tratado e lustroso, "o focinho aconchegado à vida doméstica".
Os donos já receberam propostas de venda mas não aceitaram.

Dizem que "há-de morrer de velha".
Dizem que "pode ser aproveitada para artista de circo".

3 comments:

Ricardo said...

O "Jornal de Tomar" em grande!

Jota p\ extenso said...

"Cidade de Tomar", se faz favor :)

Outros temas da semana:
-"Freguesia de Alviobeira com placas de boas-vindas e indicativas de entrada na freguesia" (pág. 8)
- "Começar o ano a roubar Electrolar" (o espólio foi de dez euros da caixa)
- "Alviobeira aprumadinha" (sobre as novas placas de boas-vindas - pág.27)

Devaneante said...

Adorei o primeiro texto! Excepcionalmente bem escrito.