Wednesday, January 30, 2008

sangue

Havia já sete dias que pelas fontes e ribeiras das aldeias não corria uma gota de água. Era Inverno mas a água que chovia atravessava o chão e penetrava na terra sem se deter por um segundo. Mesmo quando as pessoas saíam à rua e punham as mãos em concha para apanhar as gotas caídas do céu estas desviavam-se com sons que pareciam pequenos risos trocistas.

Perante a gravidade da situação reuniram-se as aldeias e escolheu-se de entre todos os homens um apenas. Horas depois, no momento em que o escolhido saía da sua aldeia, os restantes habitantes começaram a retirar todos os espelhos que tinham em casa ou havia nas ruas.

Quando, no dia seguinte, conseguiu visar perfeitamente o alvo e prender firmemente a espingarda com o corpo, o homem pensou qualquer coisa que não conseguiu exactamente compreender o que era. Foi apenas uma fracção de segundo em que o seu pensamento andou longe dele.

Imediatamente a seguir disparou.

Até ao fim da vida haveria de ouvir perguntarem-lhe como tinha conseguido apanhar de costas uma montanha, que por natureza está sempre de frente para toda a gente. A única explicação que arranjou nunca convenceu nenhum dos então gratos, mas cépticos, aldeões:
- O meu pensamento fugiu-me por um momento... - repetia hesitante - eu acho que foi ao outro lado chamá-la para que não me visse a cara...

O tiro não foi certeiro, mas deixou moribunda a montanha. Estava cumprida a ordem do Conselho. O homem voltou então para a sua aldeia. As pessoas reuniam-se em redor das fontes e do pequeno curso de água que tinha voltado a correr, para verem os seus rostos e celebrar o regresso do espelho que nunca descansa. Uma velha chorava e percorria a sua própria cara com as mãos, "a decorar com os dedos o que os olhos não voltarão a ver", sussurrava nas pausas do pranto.

Três dias passaram até que a aldeia compreendesse as palavras da mulher. A água tinha voltado a evitar as aldeias. O céu carregado de nuvens escuras recusava-se a chover.

Das outras aldeias vieram emissários que exigiam que o homem fosse mandado de volta para a montanha e resolvesse o que estava mal. O conselho não foi sequer reunido. O homem não foi sequer chamado. Ia já na quinta hora do seu caminho.

Foi com o cair da noite que chegou até junto da montanha. Encontrou-a deitada,ainda com a cabeça cheia de neve, olhando de lado como quem tenta pegar no sono mas tem um pensamento que teima não largar.
Ele, homem, tinha decidido que a sua primeira pergunta seria sobre a dôr, se lhe doía o ferimento ou não; que a segunda sobre o porquê de não haver água nas aldeias; e a terceira seria se a montanha lhe perdoava tê-la apanhado de costas.
Sentou-se e olhou-a.

Conversaram durante alguns minutos. O homem ignorou totalmente as perguntas que tinha planeado. A montanha tinha uma voz suave, redonda de veludo, mas com uma ligeira roquidão de pedra. A conversa terminou quando a voz, cansada, se extinguiu.

"O teu tiro tirou-me água durante mais três dias. Três dias para lá daquilo que eu tinha prometido a mim mesma. Desde sempre sangrei água para o vale, à vista de todos. Agora tenho finalmente a vergonha que sempre quis. Que nunca compreendas como é arrogante o acto de sangrar à vista de todos."

O homem deixou-se ficar a velar o cadáver da montanha durante toda a noite, enterrando-a aos primeiros raios de Sol. Depois, lentamente, iniciou o regresso à aldeia.

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