Tuesday, October 23, 2007

Moral da história.

Saiu de casa bem cedo como era seu costume. As ruas praticamente ainda vazias de gente. Na paragem do autocarro, lá estava ele, mostrando que aquele era um dia igual aos outros. Todos os dias via aquele homem ali, com o seu casaco demasiado grande, a camisa desajeitadamente vestida. Por uma vez, naquela manhã, decidiu falar-lhe:


- O senhor desculpe... mas para onde vai todas as manhãs que vou no autocarro até ao fim e nunca o vejo sair em lado nenhum?
O outro fez-lhe um ligeiro cumprimento com a cabeça e respondeu em voz calma:
- E quem lhe disse que o fim é exactamente onde sai? Julga-se importante a esse ponto?
- Mas repare... - preparou-se para argumentar com a mesma calma - eu saio na paragem indicada como o destino final para esta carreira.
- Sabe que... bem, eu permito-me a liberdade de não me render a um nome na frente de um veículo. É por isso que apanho o autocarro e não o eléctrico.
- Mas aqui não há eléctricos...
- Pois não.
Respirou fundo... se calhar era exactamente o tipo de conversa que esperava.
- Ouça... acho que não gosto da sua atitude. - disse-lhe, depois de uma pausa.
- Nem eu da sua. - respondeu o outro, prontamente.
- E no entanto sempre conseguimos partilhar o autocarro, a paragem.
- O silêncio pode mais do que se julga, meu caro amigo.
- Bem, será então melhor calar-me.
- Permita-me dizer-lhe que, caso não saiba, o silêncio é como qualquer outro bem precioso: uma vez quebrado, o seu valor cai abruptamente. O seu novo silêncio, esse que oferece, lamento dizer-lhe, já não compra uma coexistência pacifica.
Quis resolver o assunto. Uma última questão:
- Diga-me para onde vai, por favor. Satisfaça-me a curiosidade.
- E se lhe disser que acompanho a carreira até voltar precisamente aqui?
- Estaria no seu direito.
- Não fujo aos meus direitos. - sorriu o outro.
- É isso então que faz? Volta para aqui?
- Eu não disse isso...
O jeito arrogante e teatral daquele homenzinho tinha-lhe ganho finalmente. Agarrou-o pelo casaco, mas sentiu algo estranho.
- Este casaco... quem o fez assim?
- Assim como, caro senhor? - sorriram novamente os olhos brilhantes.
- Assim, largo...
- Acha mesmo que as suas mãos são assim tão diferentes das dos outros? São aliás muito parecidas, a quem as vê como eu, a quem as sente como o meu casaco, caro senhor.
- Não me chame isso. Parece um insulto na sua boca.
- Não se dá bem com insultos?
Fartou-se. Ergueu um punho direito à cara do homem, mas deteve-se no último momento.
- Escute, não me bata. - disse o homem ridiculo. - Sou frágil e quebro.
- Lamento, mas apetece-me quebrá-lo.
- Quebrado não lhe sirvo. Partido ainda menos.
- Não estou a perceber...
- Quer viver comigo? - perguntou o outro.
- Quanto tempo?
- Sete anos.
- E depois vai-se embora?
- Tem a minha palavra.
- Ok. Sete anos. Mas tente ficar calado. - concordou finalmente.
- Muito bem. - disse o outro, fechando os olhos.
O vidro partiu-se, a mão cuspiu o seu sangue de dentro para fora.
Olhou para os pontos brilhantes que se espalhavam agora no chão.
"Sete anos é muito tempo" pensou. "Porque é que ele tinha de vir numa caixa tão fácil de abrir?"

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