Tuesday, November 18, 2008

janelas são bocas

O menino caminhava pelas ruas e ouvia vozes. Caminhava pela mão da mãe, e ouvia vozes que ela não ouvia. Vezes sem conta o menino lhe puxava o braço e chamava por ela, mas ela nunca o ouvia, por ir tão alto.
Eram as vozes das janelas dos prédios que o menino ouvia, a contarem as suas histórias umas às outras, e a quem mais as quisesse ouvir. Quanto mais aberta estava, mais alto a janela falava, porque janelas são bocas.
Ouvia todas as histórias e guardava-as com todo o cuidado. Guardava-as nos bolsos, entre todas as coisas que os meninos são capazes de guardar nos bolsos, ou simplesmente levava-as para casa, embrulhadas nas mãos cobertas de terra ("limpa as mãos, Francisco... não te disse para não ires jogar para o meio da terra?").
Quando regressava a casa, ia direito para o quarto ("vai fazer os deveres, Francisco."), fechava a porta e chegava-se à janela. À sua própria janela, a que falava para ele, a janela do quarto do menino. Ajoelhava-se junto à moldura de Mundo e desembrulhava a história que tinha conseguido levar intacta até casa. Depois, as histórias começavam a contar-se à janela, que as ouvia com um sorriso.
A janela do quarto do menino era uma janela diferente: tinha sido montada ao contrário, muitos anos antes do Francisco entrar naquele quarto pela primeira vez. Aterrorizada, tinha chamado o carpinteiro até ficar sem voz, tentado explicar-lhe o equivoco. Mas o carpinteiro não ouvia vozes, muito menos janelas.
Todos os dias o menino levava uma história nova à sua janela que vivia de costas para o Mundo: as janelas de um último andar que não podiam ser mais diferentes (uma tinha vertigens e vivia sempre em pânico, a outra sonhava um dia poder voar); a janela de um rés-do-chão que por ter o trinco estragado havia anos não se podia calar e que por isso tinha começado a contar alto (já tinha acabado os números, as letras e contava agora em nomes de pessoas de um país enorme, muito para lá de todos os prédios da rua).
No final, a janela aplaudia, o menino agradecia, e a história contada pedia licença para se retirar. A maior parte das histórias voltaria um dia mais tarde, para fazer companhia à janela cega.
Mas um dia, tinha o menino saído, a janela começou a chorar a meio da conversa com a história da clarabóia que era solista no coro do telhado, exactamente no mesmo momento em que a mão da mãe do Francisco começou a jorrar sangue pelo passeio, criando pequenas poças vermelhas.
Uma pedra, nascida a voar não se sabia de onde, tinha sido atirada à janela. A janela ficou ilesa, mas o menino, que se encontrava a ruas e ruas de distância, espalhou-se pelo chão em mil pedaços de cristal.

Durante os anos seguintes, viria gente de longe para admirar o fenómeno do quarto virado para o Sol que estava sempre escuro, apesar da enorme janela completamente aberta.
Ou então não viria ninguém, e horas depois de serem varridos os últimos estilhaços de criança do passeio, a janela deixar-se-ia cair de costas, vendo finalmente passar por breves segundos o Mundo que um carpinteiro surdo lhe tinha negado.

7 comments:

Ricardo said...

Foda-se... adorei o final mano, porra. Muito bom, és grande chaval.

rosas said...

Que delícia, J. Queres escrever um livro de contos ?

Jota p\ extenso said...

Rosas: obrigado.

Não diria que não a uma coisa dessas, mas por enquanto vou escrevendo um blog de contos.

Assim sempre poupo umas árvores, que não têm culpa dos devaneios de um gajo :)

rosas said...

Isso para mim é desculpa. As árvores perdoam no caso de servirem uma boa causa como a cultura, mais especificamente, um bom livro.
Tal como eu, elas também são anti-livro digital, que não tem cheiro, não dá para sublinhar e UM livro desses pode conter centenas de obras, quais TOMOS I e II do código civil. Isso não é bonito.

Jota p\ extenso said...

E no entanto, eu nunca vi uma árvore sentada a ler um livro.
Mas se calhar estava distraído.

Devaneante said...

Adorei! Há por ai muito papel mal gasto em tantas coisas que não fazem sentido!...

Se, para não se cortarem arvores, for necessário cortar no papel, haverá muito por onde cortar antes de chegar aos (bons) livros...

Sara Deever said...

A cada linha, enternecia e sorria :)